domingo, 15 de junho de 2008

Histórias sem pé nem cabeça - parte 2

Minha cara,

Você acha que eu nunca saberia. Eu soube. Como? Eu vi, eu vi com esses olhos que a terra ainda há de comer, eu vi, eu vi, eu vi! Você dirá que não há mal em mãos dadas, amigos podem muito bem andar assim, que sou antiquado e que a sociedade já aceita isso,coisa e tal, mas não! Aquele contato, por mais pueril que pudesse parecer, transcendia a relações mais que fraternas, cheirava a cio, carne, sexo. Sou e serei pudico, mas isso não posso admitir. Ao ar livre, enquanto o meu patrício estava a exaurir sua paciência e sua vida numa labuta ingrata. O que direi para o meu amigo? Não sabe a sinuca de bico que você me meteu! Hei de avisá-lo da sua infidelidade ou hei de pensar dele como traído, corno, sem nada falar e torcer para que ele desmascare esta farsa, hein?
Não consigo pensar em outra coisa. O fulaninho que com você estava não conheço, tive ódio mortal na hora, juro-lhe por tudo que é mais sagrado.
Mas, por mais que a odeie momentaneamente, não consigo ter ódio de você. Não consigo nem me esforço para ter.
Ainda é tempo de você mudar de idéia. Estarei sempre aqui esperando por você. Você sabe o porquê.

Hilda Hilst

Deu-me o amor este dom:
O de dizer em poesia.
Poeta e amante é o que sou
E só quem ama é que sabe
Dizer além da verdade
E da vida à fantasia.

E não dá vida o amor?
E não empresta beleza
Àquele que se quer bem?
Que não vos cause surpresa
O perceber neste amor
Fidelidade e nobreza.

E se eu soubesse que à morte
Meu muito amar conduzia,
Maior nobreza de amante
Afirmar-vos inda assim
Que ele tal e qual seria
Como tem sido agora

Amor do começo ao fim.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Faca de dois gumes

Acabo de assistir o filme 'Faca de dois gumes', de 1989, que passou ontem de madrugada no Intercine. Meu Deus, fico pensando, a história bem que poderia ter ocorrido na vida real!
'Dinheiro não adiantou', não sei, fiquei chocado, profundamente, não sei. Tudo por causa do pressuposto de que toda ação tem uma reação, ou seja, é o sentido faca de dois gumes aplicado a vida 'real'; como uma mentira pode fazer com que algumas verdades apareçam. Dessa faca prefiro não usar para cortar o bife do jantar.

domingo, 8 de junho de 2008

Penetra surdamente no reino das palavras

"Penetra surdamente no reino das palavras/ Lá estão os poemas que esperam ser escritos", já nos disse Carlos Drummond de Andrade em seu belo poema 'A procura da poesia'.
A busca pela palavra certa, que exprima a condição e/ou sentimento da ação, ao menos para mim, é penosa.
Sempre brinco com as pessoas com as quais eventualmente troco e-mails dizendo que adoro ruminar o que escrevo, não é preguiça nem nada, é simplesmente pensar na palavra certa, que caracterize o ato e o fato.
O problema é penetrar de cabeça aberta, não querendo ofender. Sempre pego-me a fazer brincadeiras politicamente incorretas usando os termos mais polidos possíveis. A língua brasileira é fértil, porém quando comparada a língua latina, perde muito na ironia, pois ao permitir o uso de declinações, o latim dá-nos o poder de 'julgar' a ação conforme a terminação das palavras da oração.
Os poemas que esperam ser escritos que fiquem esperando, acho que hoje não será o dia.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Ouço falar

Ouço falar o quanto está longe
Não vejo a hora de lhe ver voltar
Não importará o horário
A casa toda eu vou arrumar.

Hei de colocar roupa nova,
E ainda mandar rezar
Treze missas pela benção
Pelo tempo que tive de esperar.

Dizem que um sinal foi mandado
Mas eu me recusei a acreditar
O telegrama era curto, mas claro
Preferi ficar a esperançar.

Se você voltar e eu não estiver,
Não se afobe, vá jantar
Deixarei a comida no forno
É riscar o fósforo para esquentar.

Antes eu não segurava
E dava para ficar a chorar
Agora achei o conforto
E prefiro ficar a pensar.

Pensar o quanto Deus é bom,
Ou seria mal por lhe levar,
Para lugar onde não posso lhe ver,
Para lugar onde não posso lhe tocar.

Ontem mesmo, peguei seu caderno
E fiquei a tarde a decifrar
Teria você deixado alguma mensagem
Que agora muito iria me confortar.

Estou esperando, apareça
Mas não esqueça de avisar,
Estarei com certeza na labuta
Mas sempre esperando você chegar.

Prometo não ficar cansado,
Mas agora preciso me deitar
Para que tenha sono tranqüilo
E com você me seja permitido sonhar.

Personagens da literatura que ninguém lembra - parte 1

Chiru Mena e Cacique Fagundes, em 'O Tempo e o Vento';
Encarnación, em 'A relíquia';
Conselheiro Acácio, apesar do acacismo nunca ter sido tão utilizado como está a ser, em 'O primo Basílio';
Salvatore Tessio e Genco Abbandando, em 'O Poderoso Chefão';
Sic Transit, em 'Pilatos';
Vilela, o marido traído, em 'A cartomante';
Araquém, em 'Iracema';
Compadre Salustiano, na história do 'Analista de Bagé';
Vereador Luiz Vieira, em 'Boca do Inferno';
Enoque, em 'O matador';
Esperidião, em 'República dos Assassinos';
Leitão Leiria, em 'Saga';

domingo, 1 de junho de 2008

Histórias sem pé nem cabeça - parte 1

"Haveria de ter graça a ação. Mas não teve. Deveria ter ficado mais experto, mas nela confiei. Como poderia desconfiar daquele anjo de candura?
Dois anos, dois anos meu Deus, vendo-a, cumprimentando-a, sem poder com ela falar ou nela tocar. Seus olhos ariscos me assustavam, não posso negar. Coragem, pura e simples, com mulheres, nunca tive, tudo culpa de um maldito trauma idiota de infância, mamãe com medo que me tivesse qualquer contato com outra garota senão com Soraia, a tal prometida desde o meu nascimento.
Soraia não me atraia de maneira alguma, eu queria era ela. Seu nome era Helena. Helena, que vivia me enchendo sobre minhas melenas, até o fatídico dia.
Nunca gostei de café, mas com Helena convidando, até a mais amarga cafeína poderia se transformar na mais doce sacarose. Café puro, veio a proposta, 'se você cortar suas melenas, terá a Helena', coisa estranha, Helena só se referia a ela mesma na terceira pessoa.
Fiquei doido, maluco, e respondi, 'topo, topo e topo'. Emoção maldita, nem perguntei o porquê de tal ato.
Pedi para o bendito barbeiro cortar minhas melenas cultivadas com orgulho, tais quais as de meu finado pai. Não gostei do resultado, mas Helena valia. Ao sair do salão, deparo-me com Soraia. Soraia nada me pergunta, só chora. 'Helena me contou que você cortou suas melenas por ela'. Respondi que ela estava enganada, não gostava delas, só as deixava em homenagem a papai. E fui cobrar a promessa de Helena. Ela solenemente ignorou-me, 'prova o que eu lhe disse?' ela retorquiu. Fui enganado, magoei Soraia, e ainda perdi as melenas. Tudo para ficar com Helena. Fechei a cara, fui para minha sala, e chorei."